segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Sangue e Morcegos

Já fazia algum tempo que a observava. Era uma menina encantadora, que aos olhos comuns pareceria apenas uma garotinha tímida e estranha. Contava com aproximadamente 17 anos e era uma criatura pálida, de longos cabelos escuros e selvagens.
Lembro-me da primeira vez que a vi, no Saveur Café. O sol havia se posto a menos de uma hora quando cheguei ao café e sentei em minha mesa de costume... e lá estava ela! Sentada em uma mesa no canto, próxima à janela. Ela aguardava seu café enquanto lia um livro, tive que me esforçar um pouco, mas consegui ler o seu nome – Drácula, de Bram Stoker. Por três dias seguidos vi esta mesma cena, como se tivessem colocado um quadro dela em minha frente para que pudesse me deleitar. E dia após dia a pequena garota me fascinava mais e mais! Foi então, que resolvi segui-la, descobrir onde morava e seus hábitos...
Não sabia ao certo que horas ela chegava ao café nem de onde vinha, ou qualquer informação sobre o que ocorria durante os seus dias. Entretanto, por meses a fio lá estava ela, na mesma mesinha, lendo e esperando pacientemente seu café, quando então eu chegava. Sua leitura estava sempre ligada a temas como vampiros e vampirismo, bem como bruxaria, ciências ocultas, ou temáticas próximas a estas; o que parecia assustar um pouco alguns dos funcionários do café – este sentimento que eu podia perceber neles me deliciava, pobres mortais que não sabiam de onde poderia vir o verdadeiro perigo... Devorava com tanta fome o conhecimento que lhe traziam os livros, que não dispersava a tensão nem mesmo quando passava tão perto de sua mesa que a fazia vibrar levemente, e qualquer imortal sabe como este gesto faz com que a alma do seu escolhido estremeça.
Após o café, a doce Mabelle – sim, este era seu nome – caminhava despreocupadamente até uma livraria, e alguns dias perdia horas lá dentro, mesmo que não fosse levar um só livro. Quando saia cedo da livraria ficava perambulando pelas ruas, sempre tive a impressão de que não gostava de ir para casa. Ela morava no segundo andar de um prédio modesto, o que me causou certo infortúnio, pois dificultava um pouco que eu pudesse espiar pelas janelas e descobrir algo mais. Como não era tão alto, esperei que fosse tarde da noite, em um dia de semana, e enquanto todos dormiam escalei as paredes e descobri qual era a janela de seu quarto.
Aluguei o apartamento imediatamente à frente do seu, que possuía uma janela perfeitamente paralela à sua, apenas para poder observar melhor os seus afazeres noturnos. E que bela surpresa foi descobrir que a jovem costumava deixar quase todas as noites as cortinas e, por vezes, a janela completamente abertas, enquanto ainda estava acordada – parecia até à espera daquelas criaturas de seus livros. Assim pude notar as sutilezas da decoração de seu pequeno e belo quarto; nada muito sofisticado, apenas aquela rebeldia juvenil, cartazes negros, de bandas pouco conhecidas, tampando as paredes rosas de seu quarto de infância. Quanto a sua rotina? Horas e horas no computador ouvindo música com seus fones, enquanto vasculhava a Internet a procura de informações sobre seus queridos seres das trevas. Vidrada demais para notar o que lhe observava, às vezes de tão perto, em sua sacada.
E por meses foi assim...mas uma noite tudo mudou! Já era tarde quando aquela garotinha que vivia trancada em seu quarto, fugiu silenciosamente de casa, e eu segui todos os seus passos, que nos levaram até uma praça à umas duas quadras. Ela parecia ansiosa, estava esperando por alguém, não demorou muito tempo até que um garoto, que aparentava ter a mesma idade dela, chegou. O rapaz, que nada tinha de especial, vestia uma longa capa, e a mim parecia agir demasiadamente teatral, ela se encantava com ele, eu o achava patético.
Enfim Mabelle achara um amigo que compartilhava seus gostos e logo faria mais. Suas saídas noturnas tornaram-se recorrentes, e eu não suportava vê-la com um ser tão deprimente como aquele. Foi então, que em uma sexta-feira, à meia-noite, o garoto a levou para conhecer a Congregação. Um grupo não muito grande de mortais, todos com idade próxima à de Mabelle, que se alto denominavam a Congregação dos Morcegos – um nome estúpido saído da cabeça do mais cretino entre eles, e também o mais velho do grupo beirando seus 30 anos, que os liderava assustando com truques de mágica tão toscos que uma criança de 8 anos poderia dominar.
Para minha tristeza, minha querida Mabelle passou a frequentar as reuniões da Congregação, que ocorriam todas as sextas-feiras e durante os dias de lua cheia – não consigo pensar no que poderia ser mais clichê! Estava cansado de toda essa tolice! Decidi que finalmente me aproximaria dela, e que modo melhor do que entrando para a Congregação? É até difícil conter o riso quando me lembro daquele bando de mortais que se pretendiam vampiros, mas que eram tão estúpidos que não percebiam o mal que agora estava com eles.
Já frequentava a Congregação como convidado, quando Mabelle foi iniciada. Era uma sexta-feira de lua cheia, o líder fez o seu showzinho habitual e mandou que trouxessem a vítima – não sei quais eram seus meios ou critérios, não me importava – uma moça jovem, muito bonita por sinal. Seguindo a ritualística, a amarraram em uma roda de madeira, em que havia um pentagrama desenhado, de modo que seus contornos seguissem os do grande pentagrama. Após, com um instrumento fabricado por eles, que consistia em um pequeno garfo de 2 dentes confeccionado de ossos, perfuraram a jugular da moça – novamente um show de cretinices clichês. Então giraram a roda até que a moça ficasse de cabeça para baixo, e recolheram o sangue que escorria com um grande cálice de ouro – na verdade algum metal barato que os mais tolos acreditavam ser de ouro.
A iniciação completou-se quando Mabelle bebeu do sangue da vítima, e bebeu com tanta sede pelo poder que acreditava que aquilo lhe traria que tiraram-lhe a taça das mãos, pois todos os iniciados deveriam beber, e sempre que necessário, reabasteciam o cálice no corpo da vítima que permanecia de cabeça para baixo, como antigamente os animais ficavam no matadouro.  E todos pareciam se deliciar com aquele momento, um êxtase coletivo, acreditavam que o sangue compartilhado da pobre jovem lhes daria poder, e felicitavam Mabelle porque agora ela era um deles. Agora ela era um deles...
Não poderia aguentar muito tempo mais na presença de tanta ignorância. Continuava a observar Mabelle, mas ela já não era mais a mesma. A sede a consumia, queria mais e mais, o poder que acreditava que teria. Aos poucos parecia que se transformava num ser patético como aqueles que agora chamava de irmãos. Eu precisava por um fim nisso.
Uma semana antes do que seria minha iniciação, a segui após o término da reunião da congregação. Como de costume, ela ia sozinha por um caminho escuro que levava até a rua que dava acesso à praça em que conhecera o primeiro de seus amigos da Congregação. Eu sempre a seguia por estas ruas, mas pela primeira vez eu deixara que ela percebesse minha presença. Era delicioso sentir seu medo, afinal, não deveria ela ser uma criatura da noite agora, quem poderia lhe fazer mal? Todavia, só deixei que me visse quando chegamos à tal praça.
– Que susto Vladmir! O que você está fazendo aqui? – disse ela. Não pude conter o riso, rapidamente agarrei-a e com meus dentes perfurei-lhe o pescoço. Ela sorriu. – Finalmente você apareceu! Esperei tanto tempo para ter uma chance de me juntar aos seres das trevas...
– Garota tola! Porque achas que daria a imortalidade a um ser corrupto que bebe de seu semelhante em busca do poder? – voltei a sugar seu sangue, dilacerando seu pequeno e fino pescoço. A garota parecia aterrorizada, seus sonhos e ambições se transformavam em pesadelo! E finalmente a última gota de seu sangue corria em minhas veias imortais. – E meu nome é Kieran!
Desta vez não me dei ao trabalho de encobrir os rastros do vampiro, a Congregação para manter-se segura o faria. Levei o corpo morto de Mabelle até o local das reuniões, amarrei-a na grande roda do pentagrama, a pus de cabeça para baixo, e lá a deixei... como um aviso... para que crianças tolas não zombem de antigos mitos!